Por que o baiano ‘come água’?
Comer água. Essa enigmática expressão que nós baianos usamos me veio à cabeça ao saber de uma pesquisa do Ministério da Saúde que mostra Salvador como a capital com maior consumo per capita de álcool do país, uma média de 24,9%. Curiosamente, na Terra da Felicidade, a capital do estado da alegria, um quarto da população gosta de tomar umas. É que não se bebe só por alegria e felicidade.
Come-se água, também, para esquecer os problemas – que não são poucos. Salvador tem quatro bairros que - se fossem países - estariam entre os mais ricos do mundo. Por outro lado, os outros cento e tantos bairros (85%), se formassem um país, este seria o 2º país com maior desigualdade no mundo, à frente só da Namíbia.
A Soterópolis tem o maior percentual de desempregados do país, 21%, ou seja, quase o mesmo índice de pessoas que bebem. E uma música do paraibaiano Renato Fechine, satiriza bem um pedaço dessa realidade escrota: Ô vô bebê pa isquecê mos pobrema/ bebe, negão/ ô vô bebê pa isquecê mias dívida/ bebe, negão/ ô vô bebê pa isquecê mias angústia/ bebe, negão...
Na Bahia, ninguém bebe. Quero dizer, baiano não fala beber. Porque, na Bahia, beber é comer água. Nós dizemos: “Fulano come u’a água da porra”; “Beltrano é cumedô de água”; “Onti cê tava cumeno u’a água duríssima, né, papá?” Esse “comer água”, porém, é um beber de leve, é um biritar, tomar umas, molhar a palavra. E a coisa vai mudando conforme o teor alcoólico: beber pesado é água dura, mas se tomar todas e mais um pouco, aí você come uma água duríssima.
Só mesmo um povo irreverente e inventivo como o baiano para dizer que beber é comer. E comer água, ainda por cima! Só que é a água que passarinho não bebe e onde jacaré não nada. E mais: você vê que baiano ”come água” até no superlativo absoluto sintético, ou seja, água duríssima. Gaiato que só ele, o baiano reinventou aquela frase atribuída ao finado Jânio Quadros. Fala-se que Jânio, que foi um bebedor confesso, teria dito “Bebo porque é líquido; se fosse sólido, comê-lo-ia”. Na sua gaiatice, o baiano galhofa: “Eu num bebo. Eu como cum farinha” (tinha que ter uma farinhazinha).
Vê-se que, apesar de ser um ato profano, comer água é também algo sagrado na Bahia de todos os santos, de todas as igrejas e praias, e festas, e carnavais. Num sábado ou domingo de praia e sol, a cervejinha é de lei. É de lei também uma loirinha gelada depois do baba (pelada, futebol de baiano). Gregório de Matos, o boca de inferno, Castro Alves, o poeta condoreiro, Ruy Barbosa, o Águia de Haia, esses devem ter comido uma aguazinha de vez em quando, pois baiano que se preza tem que tomar uma.
As novelas do baiano Dias Gomes sempre tinham um personagem bebedor. Mas é na vida e obra de Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro que nós vamos encontrar as figuras que simbolizam todos os comedores de água da velha Bahia cansada de guerra. Um dos personagens mais marcantes de Jorge Amado é Quincas Berro D'Água, o pinguço que sabia nome, origem e ano de tudo que era cachaça. Ele virava o copo e dizia tudo certinho. O apelido Berro D´Água surgiu porque um dia ele bebeu, de vez, uma garrafa de água pensando que era cachaça. Cuspindo tudo de volta, ele berrou bem alto: "ÁGUAAAAAAAA".
Depois do personagem do bom Amado, a irreverência baiana criou a anedota de um bêbado que sabia todo tipo de bebida, ano, país etc. E aí, um dia, deram água para ele, que não soube o que era. Quando lhe disseram que era água, ele exclamou surpreso: "Ah, é essa que é a tal da água?" É, meus amigos (comedores de água ou não), se a pesquisa antes referida me trouxe à lembrança essas coisas, ela também me fez perguntar: "Como, quando e onde surgiu esse tal de 'comer água', esse vício social e linguístico de quase meia Bahia?". Bom, quem souber aí me fale, pois eu não tô comendo nada,só bebendo água.
* Marcelo Torres é baiano, jornalista, mora em Brasília , email marcelocronista@gmail.com e blog http://marcelotorres.zip.net. Se repassar, não altere o conteúdo e preserve nome, blog e e-mail do autor.